O OUTONO DA CEREJEIRA | Por Jair Eloi de Souza*
As nozes, embora maturadas não se abrem, são únicas em seus capulhos, e até adormecem se não abertas, são frutos da nogueira. A cerejeira não alberga essa unicidade em seus rebentos. Mas seus frutos, embora pequenos, são doces e polposos, vermelhos ou quase pretos. No meu feudo de escriba, confesso, impôs-se a dúvida ou o canzil* da lentidão no meu livre pensar. Com quem comparar aquela figura esguia, de olhos azuis, gestos adormecidos na humildade, cabelos gastos pelas intempéries do tempo, pés rachados e desprotegidos, ante a ausência de uma simples sandália? Às nozes deliciosas e únicas que fazem a festa natalina dos abastados do tempo? Não teria como. À cerejeira em flôr, que ela sempre gostava de cantarolar baixinho, um tênue solfejo, na solidão nos caminhos da vida? Seria em si uma comparação melodiosa, de um sentimento emocional, ou simplesmente uma canção. Decidi, a dúvida desaparecera, comparo-a, a MARIA, a mais nobre das mães, pois, também é seu nome.
Eu a vi muitas vezes, ao passar no oitão de sua humilde casa, beco do curinga, na Rua velha, (Amaro Cavalcanti), ministrando o catecismo, aos que se preparavam para a primeira comunhão na páscoa anual de Jardim. Mas, era também a mais fiel seguidora da gesta educacional do saudoso Paulo Freire: “De pé no chão também se aprende a ler”. Era o desasnar silábico de crianças pobres, sem roupa, sem calçado, sem comida, sem afeto caseiro, sem as luzes divinas. Segundo me informara a experiente Dulce Silva, essa generosa professora, confeccionava os cadernos do seu alunado avulso, utilizando papel de embrulho comprado nas bodegas ou mercearias da Rua Velha em Jardim. A escola informal gratuita, tinha um lenho espiritual de fé, de comunhão cristã, também ofertava àqueles infantes, o viés da caridade e da solidariedade humana, tirando-os do profano, das trevas do pecado. Tinha autoridade para isso fez parte da segunda geração do Apostolado da Oração, logo após a saga fundadora, mitos da bondade: Maria Isaura Vale de Freitas e Mãe Titica, dentre algumas mais, e dedicara a vida inteira ao trabalho zeloso com as coisas da fé cristã e com a casa de Deus, pois fora de fato, ao lado de Eunice de seu Dino, a zeladora substituta daquelas, na limpeza do templário, das vestes litúrgicas ou paramentos.
Sempre foi uma margeante do Rio Piranhas. Mas a água para consumo caseiro, carregava na cabeça enrodilhada, durante a manhã inteira, em latas de querosene jacaré ou em jarras de barro feitas pela velha artífice Cabocla de Sátiro. O consumo humano era pouco, na casa habitava além da ilustre professora, a irmã mais velha Sofia e o irmão Clarindo, cujo álibi e a silhueta, nada devia a qualquer exemplar varonil da Polis Grega e ou ao mais nobre centurião romano, pena ser acometido de avaria nas faculdades do livre pensar, ainda assim, nunca deixara de ofertar a todos nós, um sorriso doce e acolhedor, nada mais do que isso, que pena, também era um ser letrado. Para sobreviver com os seus, apascentava aquela pedagoga ímpar, nas ruas de Jardim, pequeno rebanho de ovelhas, que criava em seu muro nos fundos da casa. Não raro se via aquela ao lado da mana, a também generosa Sofia, caco de enxada nas costas, pequeno quicé* e uma velha corda de croá, em suas mãos, colhendo no alvéolo do Rio Piranhas, canafístulas d`água ou raízes de gramíneas para os cordeiros, sua única fonte de renda, quando os vendia para o abate.
O feudo da humildade, nunca lhe ofertara um vestido de laquê ou de cetim, quando muito nos fins das águas, comprava a chita em bolas coloridas. O adereço mais nobre era a fita larga e vermelha do apostolado. Em casa, a claridade de que dispunha por longo tempo, ficara nos limites de rara réstia solar, que permitia-se adentrar no âmago da moradia, quando alguma telha afastada ou quebrada, na forma oblíqua se fazia generosa e iluminava os quartos que eram escuros em plena luz do dia.
Nesse templário da precisão, albergue da fome, da solidão inacabada, da esperança vaga, da escuridão da dúvida, do nexo do padecer e da vida, da contrição da alma em nome de uma fé sublime, como imaginar nutrir-se um exemplar humano, que venha ser por aclamação, em sua terra natal, a PROFESSORA DO SÉCULO? Só há uma resposta. É notória. Na travessia do tempo é um personagem diferente. Maior que tantas façanhas humanas e até bíblicas, como a sobrevida do povo hebreu em quarenta anos no deserto, a fé que levantara lázaro, a grandeza da multiplicação dos pães nas bodas de Canaã, a coragem de Paulo ao pregar na Polis Grega politeísta, sobre o Deus desconhecido, o frágil Davi que não figurava como um guerreiro a moda espartana, derrotar o gigante Golias, com sua funda minúscula ou finalmente o cênico da passagem do povo hebreu sobre o mar vermelho, ungidos pela fé em Cristo.
Professora Maria Calixto, na brandura de sua alma, confesso dissertei a minha prosa, manto santo de ternura, a rima se fez garbosa. Da réstia de sua casa, o luminar da esperança, que no dissipar do tempo alcança, o mundo justo, com eiva de alegria, desfrute, ame seu povo, é sua a cidadania.
Abril chuvoso, 2007
*É Professor e dirigente do Curso de Direito da UFRN.
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