Recebemos do nosso amigo Jair Elói de Souza, professor de direito da UFRN e seridoense de Jardim de Piranhas, a crônica "A Vidente de Umã", que conta a história da mulher que teve mais intimidade com Lampião, depois de Maria bonita, a qual temos o prazer de apresentá-la aos nossos leitores. Esse texto faz parte da obra “Lampião: O Lobo do Cinzento”, de sua autoria, que será lançada em Natal, possivelmente em abril deste ano. Recomendamos a sua leitura.
A VIDENTE DE UMÃ.
JAIR ELOI DE SOUZA*
Os caboclos já madornavam, noite chuviscada, veredas entrançadas de cipós e feijão-brabo. As macambiras nas empenas da serra talhavam os pés semi-protegidos com alpercatas abertas e já gastas, grilos faziam uma sinfonia descompassada, porém, efusiva que de certa forma protegia aquele vivente do cinzento que se destinava a mais uma visita a sua confidente, a vidente do Umã. Era quarto minguante, o sinistro estava presente no canto lastimoso da “Mãe da Lua”[1] solitária, espojada nas galhadas na burra leiteira. Virgulino Lampião tinha lá suas confidências, quando os sonhos pesadelos lhes roubavam o sono, e no arredar da luz do dia e dos fogos com os macacos, acorria até a casa da cabocla, que via o passado nos labirintos do pensamento e antevia o futuro invisível nas dobras do tempo vincendo, era, pois, uma espécie de telepata.
A Serra do Umã tinha suas histórias de bravuras, de caboclos que traziam na sua ancestralidade a figura do temido bacamarteiro e chefe do clã, o mítico Miguel dos Anjos. Lampião admirava os dotes de robustez e valentia daqueles caboclos que faziam a vida na cumeeira e abas daquela serra. Grassava a última lua do mês das cobras, pois era vinte e seis de agosto do ano de l926. Saía de refrega no lugar chamado Favela, onde destroçara volante comandada pelo anspeçada[2] Mané Neto, e chegara à vez de visitar quem lhe dava resposta a sua mente atanazada pelos últimos acontecimentos: Como as persigas mais constantes, o despacho de macacos para o Pajeú, Caatinga do navio, Moxotó e a arregimentação de cachimbos[3], tornando os cabras de Nazaré, numerosos e mais afoitos, pois, já não cuidavam mais de suas terras, tornaram-se espécie de mercenários do cinzento, com um agravante, além de receberem soldo do Governo, na infância e adolescência criaram-se com os ferreiras, tinham os mesmos dotes, que facilitavam o permeio na caatinga, o que nunca deixou de ser temido por Lampião, daí, se valer da cabocla puxada na cor, de idade meã, olhar prudente e macerado pelo tempo e precisão, adereçada por xale fubento de tanta lavagem, a mítica Vidente de Umã, seu confessionário naquele mundaréu cinzento.
Morava a Vidente de Umã em casebre de taipa, troncho no oitão esquerdo, que se fazia de pé por milagre ou graças a duas estroncas de pau-d`arco. O adereço da cozinha um fogão de trempe, que tinturava a parede de pucumã. Na sala da frente, a presença dos registros de papel, sem qualquer moldura, mas com certeza benzidos pelo Padim Cícero, onde se via Santa Luzia, Nossa Senhora da Conceição. Na camarinha junto à parede, a zidora[4] com esteira feita de bananeiras, um cafiote de couro cru. A aproximação do visitante ilustre foi denotada pelo vira-lata que latiu. Virgulino naquelas horas tinha que adiantar o prefixo: Ôh de casa! Naquela negritude dos tempos, uma voz feminina arrastada responde: ôh de fora! Quem é? É Virgulino Lampião, Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, é de paz. Para sempre seja o Senhor louvado, em tênue bocejo respondera a mítica cabocla. A porta se abriu e fechou.
Era a quarta vez, em visita extraordinária, que Virgulino entrava naquela choça para consultar a vidente. A primeira em novembro em plena seca de l919. A segunda no principiar do ano de l925. A terceira em dias de janeiro de l926. Era também costume todo começo de mês quando estava em refrigério visitá-la ocultamente. Segundo Frederico Bezerra Maciel, reproduzindo diálogo do Padre José Kehrle com Lampião, este levava a sério essa visita, tanto era assim que provocado pelo vigário deixou essa relíquia: “Padre Kehrle: Porque você nunca caiu em emboscada?” “Porque teu u`a mulher em Umã que devinha tudo a respeito de mim” respondeu Virgulino. Padre Kehrle: “É feiticeira?” “não Senhor. Ela tem devoção às almas”. “Duas noites antes de findar o mês, sonha tudo que vai me acontecer”. Essa é minha protetora aqui na terra.
Na primeira visita a Vidente em novembro de 1919, apareceram duas bandeiras separadas, logo em seguida morreram seus pais. Na segunda em l925, foi a vez do seu irmão Livino. Em l926, aparecem as bandeiras de números 4 e 5,. Logo no comecinho do ano, morrera sua Irmã Angélica em janeiro e no seu final em dezembro, era vez do seu irmão Antônio, o mais velho e seu lugar tenente mais graduado, cuja função, era atuar na retaguarda, principalmente quando o palco de luta era um desfiladeiro ou em boqueirão de Serra, utilizando o famoso laço húngaro, tão executado pelos que fizeram a travessia nacional nas hostes da coluna Prestes.
Convém admitir que essa cabocla tenha morrido sem percepção de ter sido talvez, mais determinante na vida de Lampião que qualquer outra mulher, incluindo-se aí a própria Maria Bonita, que embora tenha estabelecido no âmbito do bando, a tenda do cupido em coitos remotos, não prenunciou a morte de Lampião, como o fez a Vidente, pois, pouco tempo do epílogo da saga lampiônica, dissera ao Rei do Cangaço, quando provocada pela indagação, o que veria ser “uma cobra bem comprida vomitando fogo”? A Cabocla telepata dissera: “A serpente comprida seria a estrada, o progresso, o caminhão a levar gente do Governo a sua persiga. O fogo que vomita é a costureira,[5] que vai dar cabo de sua vida”.
Essa interpretação mística e mítica de que Lampião tinha o “corpo fechado pra bala, era máxima popular não só nos Sertões do Seridó, como em todo o Nordeste, inclusive atribuía-se a Padim Cícero Romão ser o grande protetor de Lampião. No entanto, não é mistério, Lampião no seu último estágio, que foi o Cangaço-meio, era um facínora muito bem informado, montara rede de positivos, coiteiros, cuja mantença financeira, comprometia setenta por cento de sua rapinagem, além dos seus dotes de maior guerrilheiro do Cinzento, quando sendo sabedor das existências dos pequenos choradores ou finas veias de cacimba, fazia do Raso da Catarina, um dos maiores desertos do Mundo, seu habitat natural, pra não dizer um baita refrigério, com direito a toque de concertina, em xote gineteado ou xaxado parraxado, o parraxaxá daqueles bandoleiros nômades do cinzento nas terras nordestinas.
É era de Lua crescente em bolandeira fosca/agosto/2010.
*É Professor de Direito da UFRN.
[1] - Coruja noturna de bico e fossa bucal alongados, que permite uma abertura de mais de 20 centímetros , vive de forma solitária e externa preferencialmente à noite, cantos lastimosos. Na crendice popular, seu choro madrugadenho, dizem os povos do cinzento, tratar-se de crianças que morriam pagãs, e estavam a chorar, pedindo rezação de missa, para poderem entrar no céu.
[2] - Hierarquia militar. Militar que detinha a posição hierárquica de anspeçada.
[3] - Designação dada aos civis pagos pelo Governo Pernambucano, para darem persigas ao cangaço lampiônico. Desses, se destacaram os cabras de Nazaré, cuja valentia sempre fora levada em conta por Virgulino Ferreira, pois, os conhecia desde a infância e sabia de suas habilidades no permeio da caatinga do Navio, Pajeú, Moxotó e adjacências.
[4] - Espécie de cama rústica. No caso específico a usada pela Vidente de Umã, era feita de toros toscos de madeira não trabalhada, servia como colchão, lâminas de caule de bananeira, um espojadouro Franciscano, dos que só acomodavam viventes da precisão.
[5] Tratava-se de referência a metralhadora que estava chegando como arma mortal, e que tinha o apelido de costureira, de quem foi vítima o bando na gruta de Angicos em Sergipe, em l938.
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